O único Deus da História

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O único Deus da História

Texto básico: Atos 4.1-13

Leitura diária
D Jo 14.1-15 O único caminho
S Lc 24.1-49 Em toda a Escritura
T Cl 1.24-29 Mistério revelado
Q Ef 3.1-13 A graça de pregar a Cristo
Q 2Co 4.1-6 Evangelho da glória de Cristo
S Tg 2.1-16 A glória prática do evangelho
S Mt 22.1-14 As vestes gloriosas de Cristo

Introdução

“Nos fins da Idade Média pesava na alma do povo uma tenebrosa melancolia”, constata o holandês Huizinga.[1] Os séculos anteriores à Reforma são descritos como período de grande ansiedade.

Lutero (1483-1546) e as suas famosas angústias espirituais, espelhava “o resumo dos medos e das esperanças de sua época”.[2]

Calvino (1509-1564), ainda que não sendo dominado por esse sentimento, refletia uma constatação natural: a fragilidade humana.[3]

A Reforma Protestante do século 16 foi um movimento eminentemente religioso e teológico (pelo menos em sua origem); estando ligada à insatisfação espiritual de dezenas de pessoas que, ao longo dos tempos, não encontravam na igreja romana espaço para a manifestação de sua fé nem alimento para as suas necessidades espirituais. As insatisfações não visam criar uma nova igreja, mas sim, tornar a existente mais bíblica. Portanto, a Reforma deve ser vista não como um movimento externo, mas sim, como um movimento interno por parte de “católicos” piedosos que desejavam reformar a sua Igreja, revitalizando-a, transformando-a na Igreja dos fiéis.

A Reforma ocorreu na História, dentro das categorias tempo e espaço, em que o homem está inserido. Isso não diminui as causas e muito menos o valor intrínseco da Reforma; pelo contrário, vem apenas demonstrar o que a Palavra de Deus ensina e no que creram os reformadores: Deus é o Senhor da História. Toda a relação “natural-histórico” não é casual nem cegamente determinada: É dirigida por Deus, o Senhor da História. O propósito de Deus na História como realidade presente, faz parte da essência de nossa fé.

Dois dos pontos enfatizados pelos reformadores foram: Somente as Escrituras e Somente Cristo. Essas afirmações envolviam a compreensão de que somos salvos unicamente pela obra de Cristo e que tudo que podemos saber de Deus e de sua vontade está revelado nas Escrituras. Portanto, se queremos conhecer a Cristo, comecemos e terminemos nas Escrituras. As Escrituras se constituem no conteúdo de todo ensino e pregação da igreja.

I. Um antigo modelo redescoberto

A Reforma teve como objetivo a volta às Sagradas Escrituras. A preocupação dos reformadores era principalmente “a reforma da vida, da adoração e da doutrina à luz da Palavra de Deus”.[4] Dessa forma, a partir da Palavra, passaram a pensar acerca de Deus, do homem e do mundo.

A compreensão dos reformadores era de que não é a Igreja que autentica a Palavra por sua interpretação “oficial”, mas, sim, é a Bíblia que se autentica a si mesma como Palavra de Deus revestida de autoridade. Deus mesmo é quem nos ilumina para que possamos interpretá-la corretamente.

Na Reforma deu-se uma mudança de quadro de referência. Por isso, podemos falar desse movimento como tendo um de seus pilares fundamentais a questão hermenêutica ou da interpretação. O “eixo hermenêutico” desloca-se da tradição da igreja para a compreensão pessoal da Palavra. Há aqui uma mudança de critério de verdade que determina toda a diferença. Volta-se às Escrituras para aprender a interpretar as Escrituras. A melhor intérprete das Escrituras é a própria Escritura.

 II. A Importância da Cristologia

A Cristologia consiste na compreensão da Igreja a respeito da Pessoa e Obra de Cristo. No caso da Teologia Reformada, essa compreensão é buscada na Palavra de Deus – em submissão ao Espírito –, considerando também, as contribuições formuladas pela igreja ao longo da História. Nessa consideração histórica, devemos ter em mente que: a) somente as Escrituras são infalíveis, não as interpretações das Escrituras, quer passadas, quer presentes; b) o Espírito age na igreja e por meio dela, na interpretação da Verdade revelada, conduzindo-a à verdade (Jo 14.26; 16.13-15; 2Pe 1.3-15). Por isso, de nenhum modo podemos desconsiderar gratuitamente as contribuições históricas, sem correr o risco de anular o que o Espírito tem feito por meio dos seus servos. Portanto, c) A fé nunca pode estar dissociada dessa pesquisa.

A Cristologia se constitui no cerne de toda Teologia Cristã. Ela é o eixo da Teologia Bíblica: uma visão defeituosa da Pessoa e Obra de Cristo resulta numa “teologia” divorciada da plenitude da revelação bíblica. A consciência desse fato deve nortear o nosso labor Cristológico e, também, servir como referência e ponto de partida teológico.

 III. Fundamentação Histórica

O Cristianismo é uma religião de História. Ele não se ampara em lendas, antes, em fatos os quais devem ser testemunhados, visto que eles têm uma relação direta com a vida dos que crêem. O Cristianismo é uma religião de fatos, palavra e vida. A fé cristã fundamenta-se no próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianismo. O Cristianismo é o próprio Cristo; ele não apenas indica o caminho; antes, é o próprio (Jo 14.6).

Sem o fato histórico da encarnação, morte e ressurreição de Cristo, podemos falar até de experiência religiosa, mas não de experiência cristã. A experiência cristã depende fundamentalmente desses eventos. A fé cristã é para ser vivida e proclamada. A pregação caracteriza essencialmente a fé cristã e a sua proclamação (Rm 10.14,15). No final de sua vida, Paulo, com a consciência certa de ter concluído fielmente o seu ministério, exorta o jovem Timóteo a pregar fiel e perseverantemente a Palavra ainda que sabendo que os homens prefeririam as fábulas (2Tm 4.2-5).

IV. Jesus Cristo por ele mesmo

A questão de quem é o Cristo que cremos e pregamos permanece; essa tem sido ao longo da História uma das indagações mais relevantes para a nossa fé. As angústias medievais e ainda permanentes em nossos dias são geradas pela falta de compreensão da pessoa e obra de Cristo.

A concepção Reformada não consiste num esforço para atribuir a Cristo valores que julgamos serem próprios dele; antes ela se ampara no reconhecimento e na aceitação incondicional de suas reivindicações. Assim, aquilo que dizemos de Cristo, permanecerá ou não, conforme seja fiel à proclamação do Verbo de Deus. Por isso, a vivacidade da Cristologia Reformada e, por que não, da sua proclamação, estará sempre em sua fidelidade à Cristologia do Cristo.

Cristo por ele mesmo; esse é o anelo de toda Cristologia Reformada e, portanto, o fundamento de toda a nossa proclamação. Desse modo, devemos indagar sempre a respeito de nossas convicções e testemunho, avaliando-os por meio daquele que verdadeira e compreensivelmente diz quem é.

Neste afã, devemos estar atentos ao fato de que “Cristo por ele mesmo” envolve o limite do que foi revelado e o desafio do que nos foi concedido. Não podemos ultrapassar o revelado, contudo, não podemos nos contentar com menos do que nos foi dado. Procurar a Cristologia do Cristo eqüivale a buscar compreender em submissão ao Espírito tudo o que foi revelado para nós (Dt 29.29b; Rm 15.4). Por certo, esse conhecimento não estará restrito ao Cristo Salvador, mas, além disso, nos fala do Cristo Deus-Homem; do Cristo Eterno e Glorioso. Aliás, só podemos falar do Cristo Salvador, se ele de fato for – como é – o Deus encarnado, visto que a nossa redenção não foi levada a efeito pelo Logos divino, nem pelo “Jesus humano”, mas por Jesus Cristo: Deus-Homem.

“Devemos precaver-nos para que, cedendo ao desejo de adequar Cristo às nossas próprias invenções, não o mudemos tanto (como fazem os papistas), que ele se torne dessemelhante de si próprio. Não nos é permitido inventar tudo ao sabor de nossos gostos pessoais, senão que pertence exclusivamente a Deus instruir-nos segundo o modelo que te foi mostrado [Êx 25.40]”.[5]

 V. Conteúdo e significado da Proclamação

Quando falamos do conteúdo do evangelho, devemos definir o significado desse termo. Compreendemos ser o evangelho o próprio Cristo. Ele é a personificação do reino; Cristo é o centro para onde tudo converge. O evangelho é Cristocêntrico, porque sem a Pessoa e obra de Cristo não há Boa Nova. Cristo é o autor e o conteúdo do evangelho. Pregar o evangelho significa pregar a Cristo bem como tudo aquilo que tem relação com ele (Rm 15.20), já que sem Cristo não haveria evangelho (Lc 2.9-11).

O evangelho é uma mensagem acerca de Deus – da sua glória e de seus atos salvadores; acerca do homem – do seu pecado e miséria; acerca da salvação e da condenação condicionada à submissão ou não a Cristo como Senhor de sua vida. Essa mensagem que envolve uma decisão na História, ultrapassa a História, visto ter valor eterno. Portanto, não podemos brincar com ela, não podemos fazer testes: estamos falando de vida e morte eterna (Jo 3.16-18).

Em forma de esboço, podemos observar que evangelizar, nos moldes do Novo Testamento, significa Proclamar:

A. As insondáveis riquezas de Cristo

 “A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8).

O propósito não revelado de Deus e, da mesma forma, a sua vontade revelada no evangelho, é por demais grandioso para poder ser plenamente compreendido e “rastreado” por nós em toda a sua complexidade. O contraste desse conhecimento em relação ao nosso é intensamente perceptível (Rm 11.33). O evangelho revela essa sabedoria que, por não ser compreendida por nós em nossa maneira limitada e deturpada de pensar, soa como loucura (1Co 1.18-25). O evangelho é o anúncio da sabedoria de Deus em sua riqueza insondável.

Paulo se considera um agraciado por poder anunciar o evangelho aos gentios, levando a boa nova de salvação a qual tem em seu conteúdo essencial a incompreensível, inesgotável e inenarrável riqueza de Cristo. Não podemos pensar nessa insondável riqueza sem termos nossos olhos voltados para a encarnação do Verbo; a perfeição única e inexplicável de Jesus Cristo, o Filho eterno de Deus que se encarnou para morrer pelo seu povo, nos restaurando à comunhão com Deus. Paulo fala de Cristo como o rico e glorioso mistério que agora foi revelado aos gentios pelo evangelho (Cl 1.26,27). Em outro lugar Paulo demonstra que a correta relação com Deus e com o nosso próximo (este é o sentido bíblico da palavra piedade) começa pela compreensão correta da grandeza do mistério da encarnação (1Tm 3.16).

B. A glória de Deus e de Cristo

…O evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4). “… O evangelho da glória de Deus” (1Tm 1.11).

Deus, o nosso Pai, é o Deus glorioso (Mt 6.9,13), aquele que habita o céu. A glória de Deus é a beleza harmoniosa de suas perfeições e da sua obra salvadora. A glória de Deus é tão eterna quanto ele o é. O Deus a quem oramos é eternamente o Deus da glória: A ele pertencem “o reino, o poder e a glória para sempre” (Mt 6.13).

Jesus Cristo, nas horas que antecediam a sua auto-entrega em favor do seu povo, ora ao Pai: “… Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti (…). Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste para fazer; e agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.1,4,5). O Deus Trino é o Senhor da glória.

A glória do evangelho começa em Deus Pai. O evangelho é glorioso porque origina-se e pertence a Deus. “… O evangelho da glória de Deus” (1Tm 1.11). O evangelho também é “da Glória de Cristo”, porque Jesus Cristo é Deus: “é a imagem de Deus” (2Co 4.4).

Uma das expressões mais completas das “insondáveis riquezas de Cristo” é nos manifestada no fato da encarnação do Verbo eterno de Deus. Daí que o evangelho é a boa nova da glória de Cristo e da glória de Deus: Jesus Cristo é Deus. Em Cristo resplandece a Majestade Divina (Jo 1.14). Somente Deus é glorioso.

O evangelho nos enriquece. Jesus Cristo, o Senhor da glória, rico em sua glória eterna (1Co 2.8; Tg 2.1; Jo 17.1-5) fez-se pobre por amor do seu povo a fim de que fôssemos enriquecidos na plenitude de sua graça (2Co 8.9). Na realidade, a sua humilhação (encarnação e morte) e exaltação (ressurreição, glorificação e ascensão) não afetaram a essência da sua natureza divina.

Conclusão

A glória de Deus é totalmente invisível a nós, até que resplandeça em Cristo. O evangelho consiste no anúncio da grandeza e majestade de Deus e como podemos conhecê-lo em Cristo Jesus.

A mensagem do evangelho, conforme corretamente entenderam os Reformadores, não permite sínteses ou adaptações: O evangelho ou é glorioso em sua singularidade ou não é evangelho. O evangelho revela a glória de Cristo: o Deus encarnado que deu a sua vida pelo seu povo a fim de que agora, restaurado à comunhão com Deus pudéssemos viver para a glória de Deus. Quando barateamos o evangelho o estamos esvaziando do seu sentido glorioso e majestoso, transformandoo em uma mensagem de auto-ajuda ou num atalho espiritual para as pessoas se sentirem melhor, sem de fato resolverem seu verdadeiro problema: a relação correta com Deus. Portanto, não há autênticos substitutos para o evangelho; haverá sempre o perigo de substituir a verdadeira mensagem de salvação proveniente do próprio Deus por nossos paliativos que apenas mascaram temporariamente as nossas verdadeiras carências.

Aplicação

Quando Cristo voltar, só serão admitidos nas Bodas do Cordeiro aqueles que foram vestidos com as vestes da justiça de Cristo (Mt 22.1-14). Sem elas revelamos apenas os trapos e imundícias de nossos pecados (Is 64.6).

Lembremo-nos: “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai, como o Filho” (2Jo 9). Portanto, permanece como lema da igreja de Cristo: Somente a Palavra; Somente Cristo.


Notas
[1] Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, São Paulo: Verbo/EDUSP, 1978, p. 31.
[2] Timothy George, A Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 26.
[3] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl. 102.25,26), pp. 585,586; As Institutas, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, I.17.11; As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, IV.17.19, pp. 195-196.
[4] Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 36.
[5] João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997 (Hb 8.5), p. 209.

>> Estudo publicado originalmente na revista Palavra Viva, série publicada pela Editora Cultura Cristã. Usado com permissão.

Fonte