Religião e cultura: quais os perigos dessa mistura?

0
527
title=

Religião e cultura: quais os perigos dessa mistura?

Texto básico: Provérbios 4.23; 23.26

Leitura diária
D Sl 119.9-16 – Santidade no coração
S Rm 5.12-21 – Separados e religados
T Jo 14.5-7 – Único caminho
Q Hb 7.26-28 – Perfeito mediador
Q Os 6.1-6 – O que mais importa
S Mc 7.20-23 – De onde vêm os maus?
S Sl 51.10 – Excelente pedido

Introdução

Algumas frases de efeito têm sido ouvidas comumente entre evangélicos: “Mais Jesus, menos religião”; “mais emoção, menos religião”; “Jesus é meu salvador, não minha religião”. Essas afirmações transmitem a ideia de que religião é um conjunto de regrinhas responsáveis por estagnar a vida da igreja, acentuar as diferenças entre as denominações e, principalmente, desviar o foco do que realmente é importante para o povo de Deus (adoração, evangelização, missões, comunhão, etc.).

Veremos que a Bíblia é nossa regra para a formulação de conceitos e teorias que tratam dos assuntos concernentes ao nosso relacionamento com Deus. Desse modo, definindo religião não à luz das ciências sociais, mas à luz das Escrituras, perceberemos que não há oposição entre religião e Jesus e que a religião cristocêntrica nos convoca a um relacionamento saudável com a cultura. 

I. Definindo os termos

A religião é um fenômeno universal, pois jamais se encontrou um povo sem religião. Com o pecado, o homem se distanciou de Deus, mas somente por meio de Cristo é possível ser restaurado à verdadeira religião. O homem, no mais profundo do seu ser, é religioso; ele é determinado por seu relacionamento com Deus. Ou seja, ele tanto pode ir em direção a Deus por meio de Cristo, como a Bíblia ensina, como tentar fugir, negar ou distanciar-se de Deus ou até mesmo ter outro deus ou deuses. Nunca, porém, o ser humano será religiosamente neutro. Até mesmo aqueles que se definem como ateus têm uma posição religiosa: negam a existência de Deus.

A palavra religião, a rigor, tem um significado diferente de como tem sido utilizada atualmente. Sua origem está na expressão em latim religare, que significa religar, restaurar um laço que foi desfeito. A palavra também é largamente utilizada no sentido da busca e veneração de algo.

A etimologia da palavra em latim parece refletir o ensinamento bíblico: havia um relacionamento perfeito entre Deus e o homem no jardim do Éden. Em toda a raça humana, o exercício religioso é inerente, por pelo menos dois motivos: (1) O ser humano foi criado como ser espiritual, em conformidade à natureza divina (Gn 1.26), portanto um ser religioso; (2) Deus é inevitável (Sl 139.7).

Após o pecado, o homem passou a caminhar para longe, tentando se esconder da presença do Criador (Gn 3.8). Foi iniciativa do próprio Deus prover um caminho de reparação, a fim de restaurar a comunhão perdida. Por meio do pecado de Adão, a humanidade foi separada do Pai, mas, pela graciosa justiça de Cristo, fomos religados a Deus (Rm 5.12-21). Jesus não apenas é uma religião, mas ele é a única verdadeiramente possível e capaz de restaurar o vínculo destruído pelo pecado. Afinal, ele é o caminho, e a verdade, e a vida; e ninguém consegue ir em direção ao Pai a não ser por meio de Jesus (Jo 14. 6; 1Jo 2.1; Hb 7.26-28).

As ciências sociais geralmente definem o fenômeno religioso como algo criado pelo homem em torno da ideia de um ou vários seres sobrenaturais e de sua relação com o próprio homem (Cf. Dicionário Michaelis). Nosso ponto, porém, é que o fenômeno religioso não é um produto do homem, mas algo que faz parte da sua natureza. O homem não cria religião, ele nasce religioso. 

II . Coração: a raiz mística de nossa existência

Do ponto de vista secular, o interesse religioso do homem, embora possa admiti-lo como importante, é apenas um dos seus interesses na vida e mero produto da cultura, portanto, uma criação do próprio homem.

Não que as ciências sociais estejam sempre erradas. Na verdade, elas são estudadas e formuladas a partir dos pressupostos de seus pesquisadores, mas ninguém conhece melhor a criatura (o homem) do que o Criador (Deus), que se revelou por meio da Escritura Sagrada e por ela nos ajuda a entender mais de nós mesmos. Quando afirma sobre a alma humana algo que não fere o ensino das Escrituras, a ciência teve seu momento de verdade; caso contrário, está errada (Cl 2.8; 2Tm 3.16).

Religião é algo relacionado a um profundo mergulho no íntimo, que traz à tona as mazelas da alma. Tem a ver com a essência do ser humano, com aquele centro irreduzível, aquele ponto de concentração de todas as funções do homem, aquele ponto mais enraizado no ser e que representa a inteireza da natureza humana. Esse local é chamado pelo teólogo A. Kuyper de raiz mística e indivisível da existência humana. Na Bíblia, é chamado apenas de coração (Pv 4.23; 23.26).

A religião está enraizada no coração. Quando Davi orou pela renovação da totalidade do seu ser, ele chorou com sua alma angustiada pedindo um coração puro (Sl 51.10). No Novo Testamento, quando o Senhor desejava indicar o tamanho da corrupção humana, dizia que os maus desígnios vêm do coração (Mc 7.20-23). A carta aos Romanos diz: “Com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação” (Rm 10.10). A carta aos Hebreus deixa claro que o problema da apostasia tem sua raiz no coração: “Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo” (Hb 3.12).

Essa compreensão é importante para se entender que a religião não é um produto da cultura. Muito pelo contrário, a cultura é sempre um reflexo de nossas convicções religiosas. 

III . Religião, culto e cultura

A. Distintos ou intercambiáveis

A religião deve, então, ser distinguida, mas não separada da cultura. As ações de adoração (que também podemos chamar de culto) e as atividades criativas desenvolvidas pelo trabalho humano (também conhecidas como cultura) são duas correntes que procedem da experiência religiosa do homem. Eis aqui outro ponto importante em nosso estudo. Se atentarmos bem, perceberemos que Deus exige de nós tanto o trabalho (cultura) quanto a adoração (culto) e, em alguma medida, as duas coisas são intercambiáveis. Vejamos:

Deus visitava o primeiro casal na viração do dia (Gn 3.8) e havia instrução (diálogo) por parte do Criador com a criatura; a mulher, quando argumenta com a serpente, afirma: “Disse Deus” (Gn 3.3). Caim e Abel ofereciam sacrifícios (culto – adoração), mas tais sacrifícios eram fruto do seu trabalho, do esforço criativo, ou seja, do seu desenvolvimento cultural.

Os antigos reformadores usavam o lema ora et labora (ore e trabalhe) e, assim, demonstravam haver o entendimento de que existem essas duas atividades enraizadas na religião: culto e cultura. Nosso argumento neste tópico é desenvolvido no intuito de que se entenda:

  1. Que em nosso coração está nossa religião e, assim, temos dois produtos, a saber, a adoração (culto) e o trabalho (cultura);
  2. Disso se conclui que não há trabalho (cultura) que não seja religioso; pode ser religiosamente apóstata, mas sempre a produção cultural do homem será religiosa.

A implicação do que temos tratado até aqui é a seguinte: é um erro limitar a religião aos aspectos da adoração, ou seja, daquelas atividades diretamente ligadas a oração, leitura da Palavra e atividades da igreja, e pensar que o trabalho feito pelo homem, como por exemplo, artes, economia, educação, recreação, política, ciência, família e namoro não tenham uma dimensão religiosa. Deus criou tanto o trabalho quanto a devoção religiosa como uma consequência daquilo que há de mais profundo de nossa vida espiritual.

Afirmar que todas as coisas realizadas e pensadas pelo homem possuem sua dimensão religiosa não é o mesmo que dizer que todas as realizações humanas são corretas ou aceitas por Deus. Aliás, o ritual correto, mas com a motivação errada, é algo de que Deus não se agrada (Sl 51.17; Os 6.6; Am 5.21,22). 

B. Antigos e novos perigos

“A forma como vemos o mundo pode mudar o mundo”. A igreja cristã no período medieval via a relação entre religião e cultura de uma forma diferente da exposta no tópico anterior. O catolicismo romano limitou a dimensão religiosa a apenas aquelas atividades diretamente ligadas e dominadas pela igreja. Tudo o que estivesse fora dessa esfera era considerado profano.

A Reforma Protestante veio resgatar o caráter radical (na raiz) e totalitário (que abrange tudo) da religião, afirmando existir um relacionamento consciente ou inconsciente com Deus no coração do homem, e tal relacionamento determina todas as suas atividades. 

Conclusão

Uma leitura um pouco mais atenta das Escrituras nos conduz de maneira segura ao entendimento de que somente em Cristo Jesus é possível sermos religados a Deus. No fundo do coração, todo homem possui uma inquietação espiritual, mas alguns caminham na direção de glorificar a criatura no lugar do Criador (Rm 1.25).

Um coração restaurado, não mais obscurecido, começa a entender que possui um chamado para adorar a Deus sobre todas as coisas, tanto com o seu coração quanto com o seu esforço intelectual e o trabalho de suas mãos. 

Aplicação

O homem nasceu para render glórias a Deus. Se seu coração não estiver biblicamente orientado, cairá novamente no antigo erro de buscar glória para si (Gn 3). Você já percebeu essa tendência antropocêntrica no cenário musical, mesmo nas músicas ditas evangélicas? O que dizer daquelas populares frases colocadas nas redes sociais que visam tão somente massagear o próprio ego, mas buscam de forma egoísta bênçãos divinas? Será que suas postagens em redes sociais ou suas mensagens pelo celular demonstram que você é uma pessoa ligada a Cristo?


>> Estudo adaptado do livro O conceito calvinista de cultura, de Henry van Til, publicado pela Editora Cultura Cristã. Autor do estudo: Adenauer Morais Lima

Fonte