A doutrina da salvação somente pela graça foi fundamental para o restabelecimento da doutrina bíblica no tempo da Reforma. Essa doutrina sempre incomodou o ser humano. Ele sempre se sentiu desconfortável em saber que sua salvação não depende de si mesmo, mas exclusivamente de Deus, que a concede graciosamente, não por mérito. Gostamos de tomar nossos assuntos em nossas próprias mãos.
É por isso que essa doutrina nos incomoda tanto. Sempre foi assim, como os intermináveis debates sobre o tema ao longo da história deixam bem claro. Na Idade Média, porém, o abandono dessa doutrina alcançou seu ponto mais alto. Seu resgate foi feito pela teologia reformada.
Sola Gratia – Somente a Graça
A graça de Deus em oposição à doutrina de méritos e às indulgências
Texto básico: Efésios 2.8-9
Leitura diária
D – Tg 3.1-2 – Tropeçamos em muitas coisas
S – 1Jo 1.5-10 – Todos temos pecados
T – Tg 2.1-13 – Se tropeçar em um só ponto…
Q – Ef 2.1-3 – Mortos em delitos e pecados
Q – 1Co 6-14 – Discernimento espiritual
S – 2Co 4.1-6 – O evangelho encoberto
S – At 26.16-18 – A ação da graça
I. Missas em favor dos mortos
Na medida em que a igreja foi se distanciando da simplicidade dos tempos apostólicos, em que os cristãos “partiam o pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração” (At 2.46), a Ceia do Senhor foi adquirindo uma interpretação cada vez mais requintada. Na mesma medida em que a simplicidade do evangelho foi sendo perdida, uma ampla variedade de cerimônias foi sendo acrescentada.
Inicialmente, as pessoas que participavam da Ceia tinham que se preparar para ela apenas por meio de um autoexame, como orienta o apóstolo Paulo (1Co 11.28). Com o passar do tempo, essa preparação começou a envolver o lavar das mãos e das roupas. No começo, cada participante pegava seu bocado de pão com as próprias mãos. Depois, passou a ser servido em um pano de linho ou em um pires de ouro. Mais tarde, no século 11, passou a ser servido diretamente na boca do participante, que aguardava de joelhos diante do altar. O pão consagrado era servido não apenas na igreja, mas também nas casas, às pessoas que estavam às portas da morte, como “alimento para a jornada”, e passou a ser considerado útil para evitar desastres e pestes e para obter benefícios e bênçãos.
A partir daí, o passo seguinte foi estender a eficácia da Ceia do Senhor não somente aos vivos, mas também aos mortos. A essa altura, o costume pagão de fazer ofertas por parentes mortos e orar por sua alma no aniversário de sua morte já havia se estabelecido na crença popular. Quando a doutrina do purgatório foi estabelecida pelo papa Gregório, o Grande, a Ceia passou a ser interpretada como uma oferta do próprio corpo e sangue de Cristo em favor do parente morto. Logo se tornou uma crença estabelecida que a missa realizada em favor de pessoas mortas podia reduzir as penitências e punições temporais, não apenas aos vivos, mas também aos mortos, aliviando sua pena no purgatório.
Observe como há um entrelaçamento de erros aqui. Primeiro, há o desvirtuamento da Ceia do Senhor, que deixa de ser vista como um meio de graça e passa a ser vista como uma cerimônia religiosa cada vez mais elaborada; depois, ela começa a ser servida às pessoas que estavam às portas da morte como uma espécie de alimento para sua jornada; depois, o pão começa a ser visto como uma espécie de amuleto religioso capaz de prevenir pestes e tragédias; a seguir, há o sincretismo da fé cristã com religiões pagãs, o que gera a contaminação dos costumes religiosos do povo; surge, então, a doutrina do purgatório; por fim, a Ceia (e a missa da qual faz parte) passa a ser concebida como tendo importantes efeitos espirituais não apenas para os que participavam dela, mas também para os mortos, em memória de quem as missas eram realizadas. Um erro doutrinário nunca vem sozinho. Ele sempre produz outro ou foi produzido por outro: “um abismo chama outro abismo” (Sl 42.7).
Diante de tudo isso, a teologia reformada anuncia, com vigor e alegria: Sola gratia! Somente a graça salva. Somos salvos não por missas realizadas em nossa memória, nem por sacramentos ministrados a entes queridos, mas pela graça soberana do Senhor.
II. A compra da salvação
Na medida em que o evangelho era anunciado, as pessoas iam se convertendo e sendo discipuladas e batizadas. Isso provocava uma mudança de postura e de hábitos em grande parte dos convertidos, que vinham de religiões politeístas e tinham costumes que não se harmonizavam com a fé cristã. É claro que não se podia esperar que os crentes parassem de cometer pecados depois de terem sido batizados. Os próprios apóstolos haviam ensinado isso muito claramente (cf. Tg 3.2; 1Jo 1.8).
No entanto, os cristãos sempre alimentaram a esperança de que os novos convertidos se abstivessem de pecados graves e, ao mesmo tempo, se empenhassem em seguir continuamente os caminhos da santidade. Com o passar do tempo, surgiu a necessidade de uma distinção entre pecados maiores (mortais) e menores (veniais), que gradualmente foi colocada em prática.
Na primeira categoria estavam os pecados considerados mais graves e que supostamente tinham consequências sociais mais marcantes: assassinato, roubo, adultério, infanticídio, envenenamento, apostasia, idolatria, feitiçaria e assim por diante. Na categoria dos pecados veniais, ou menores, estavam inseridos aqueles considerados menos graves, como falso testemunho, rancor, ira, rixas, fraudes, difamação e pequenas desonestidades nos negócios. É claro que essa divisão é muito subjetiva e totalmente arbitrária. Além disso, não tem o menor embasamento bíblico (cf. Tg 2.10).
Com o passar do tempo, os cristãos começaram a tomar uma posição diferente com relação aos pecados menores. A crença geral era que eles podiam expiar tais pecados, tomando algumas atitudes, enquanto o sacrifício de Cristo ficava “reservado” aos pecados mais graves. Embora esses pecados menores fossem inevitáveis, o crente, em contraste com o incrédulo, tinha a vantagem de ser um membro da igreja e poder apagar pessoalmente esses pecados, recebendo pacientemente a punição estabelecida para eles, por meio da confissão pública ou particular ou pela prática de boas obras (jejuns, esmolas e orações). Isso deu origem às doutrinas católicas romanas da penitência e da confissão auricular.
Imediatamente depois que os pecados eram confessados ao sacerdote, este pronunciava o perdão, mas ainda tinha de impor a penitência proporcional à severidade dos pecados confessados (orações ou boas obras) para que os confessantes, dessa forma, ficassem livres, internamente, do poder do pecado. Como as pessoas que se confessavam continuavam cometendo pecados ao longo da vida, as penitências, via de regra, não podiam ser completamente cumpridas nesta vida e o déficit tinha de ser pago no porvir, por meio do sofrimento no purgatório.
Havia, porém, uma forma muito mais fácil de a pessoa cumprir, total ou parcialmente, suas penitências. A associação dessas três doutrinas (penitências, confissão auricular e purgatório) deu origem à crença de que o tempo da penitência podia ser abreviado e a própria penitência podia ser reduzida se caso o cristão demonstrasse sincero e profundo arrependimento. A partir daí, desenvolveu-se o costume segundo o qual os bispos perdoavam parte da punição ou transformavam uma penitência severa em uma penitência mais leve em favor daqueles que se mostravam zelosos em seu exercício penitencial.
A partir do século 11, porém, esse relaxamento da penitência assumiu a forma de que toda pessoa que cumprisse certa condição (como participar de uma guerra contra os mouros, de uma cruzada ou pagar para que alguém fizesse isso em seu lugar, por exemplo) podia obter perdão parcial ou total (indulgência) de seus pecados, o que reduzia ou eliminava a penitência. Dessa época em diante, com a cooperação do papado, as indulgências se tornaram tão numerosas que, finalmente, foram mais elaboradas e se tornaram uma importante fonte de renda. Sua aquisição foi facilitada e, por fim, as condições sob as quais podiam ser obtidas foram destituídas de toda seriedade.
O maior comerciante de indulgências se chamava João Tetzel. Embora exigisse demonstrações de arrependimento para que a pessoa obtivesse uma indulgência, não via problema em concedê-la a alguém que já havia morrido para que, assim, seu sofrimento no purgatório fosse amenizado. Seu conceito, como ele mesmo dizia, era de que “logo que uma moeda no cofre cai, a alma do purgatório sai”. Por certa quantia, ele emitia cartas de indulgência para serem apresentadas ao padre confessor para que ele concedesse plena absolvição depois que os pecados fossem confessados no confessionário.
A concessão de indulgências em troca de dinheiro acabou se transformando em um comércio de coisas que nunca foram e não podem ser vendidas (perdão, remissão de pecados, expiação). Por meio desse comércio, houve um retorno ao mesmo tipo de comercialização rejeitado veementemente por Cristo, quando revirou as mesas dos cambistas. Essa postura não se harmoniza com o ensinamento de Cristo, que disse aos seus apóstolos: “De graça recebestes, de graça dai”.
No entanto, deve ser observado que esse erro de comercialização da fé não ficou restrito aos tempos medievais. Ele está presente hoje, mas, desta vez, entre os evangélicos. Atualmente, temos visto uma ênfase exacerbada em uma doutrina sobre o dízimo que não tem fundamento na Escritura, segundo a qual o cristão é orientado a dar cada vez mais para receber bênçãos cada vez maiores de Deus. Os católicos medievais vendiam o perdão; muitos evangélicos modernos vendem bênçãos terrenas. Apesar dessa diferença, o princípio é o mesmo: benefícios concedidos por Deus em troca de dinheiro dado à igreja. A ambos os grupos, a teologia reformada afirma: Sola gratia!
III. Opondo-se à doutrina dos méritos
Antes de falar sobre a salvação graciosa de Deus, precisamos compreender o motivo pelo qual precisamos de salvação e porque não podemos ser salvos pelos nossos próprios méritos e esforços, mas somente pela graça de Deus. Para tanto é necessário que atentemos para a doutrina bíblica sobre o alcance e os efeitos do pecado, conhecida como depravação total.
Essa doutrina expressa o ensino bíblico de que o homem está morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1-2). Isso não significa que todos os homens sejam igualmente maus, nem que o homem é tão mal quanto poderia ser, alcançando, assim, o ápice da maldade. Também não significa que o homem esteja completamente destituído de toda e qualquer virtude, nem que a natureza humana seja má em si mesma. Essa doutrina ensina que, uma vez que o homem segue o curso do pecado (Ef 2.1-2), ele está completamente sujeito ao pecado, tendo motivações pecaminosas, inclinações pecaminosas, facilidade para pecar, está espiritualmente morto e, por isso, é incapaz de fazer ou querer qualquer coisa que o conduza à salvação, bem como é totalmente incapaz de merecer a salvação mediante suas próprias obras.
O homem não regenerado, que chamaremos de homem natural, pode, pela aplicação da graça comum de Deus, amar sua família e ser um bom cidadão, cultivando elevadas virtudes e valores morais, tais como a honestidade, a justiça, a bondade, a coragem, etc. No entanto, nada disso está isento da mancha do pecado. Essa mancha está em nossa própria natureza e, por isso, tudo o que fazemos é imperfeito. O que é imperfeito não pode merecer o perdão perfeito de Deus.
Somos todos pecadores e nosso salário, isto é, a recompensa natural por nossos méritos, é a morte (Rm 3.23; 6.23). Para recebermos vida, é preciso que Deus aja conosco de modo que vá além dos nossos méritos, dando-nos aquilo que não merecemos. É justamente esse favor que recebemos de Deus sem merecer que se chama “graça”. A salvação, segundo a Escritura e a teologia reformada, não é fundamentada nos méritos humanos, mas na graça de Deus.
Outro efeito do pecado na vida humana é o de impedir que o pecador compreenda as realidades espirituais necessárias à sua salvação (cf. 1Co 2.14). O homem natural carece de uma capacitação do Espírito para que possa discernir as realidades espirituais. Sem essa capacitação ele jamais compreenderá a extensão e a gravidade de seu pecado e, consequentemente, jamais compreenderá a sua necessidade de salvação. O homem natural está cego em seu entendimento e os seus sentimentos estão corrompidos pelo pecado (cf. 2Co 4.3-4).
A natureza humana não é má em si mesma, isto é, em essência, porque foi criada por Deus e vista por ele mesmo como sendo muito boa (Gn 1.31). Contudo sua atual condição é de total corrupção ocasionada pelo pecado. Sendo essa corrupção uma condição da natureza humana, está além de seu poder mudá-la. Isso só pode ser feito pela obra regeneradora de Deus na vida do pecador.
Paulo, escrevendo aos Efésios, dá mais um bom motivo pelo qual o homem natural é incapaz de obter a salvação por seus próprios méritos. Ele diz que Deus “vos deu vida, estando vós mortos em seus delitos e pecados” (Ef 2.1). Um cadáver nada pode fazer neste mundo, nem mesmo em seu próprio favor, no intuito de tirá-lo da morte. O mesmo acontece quando uma pessoa está espiritualmente morta. Ela é totalmente incapaz de fazer ou mesmo de querer qualquer coisa, mesmo que seja para que ela saia da morte.
Por tudo isso, o ser humano é totalmente incapaz de, por si mesmo, livrar-se de seu pecado e dos efeitos que o pecado produz em sua vida, inclusive no que diz respeito à salvação. Diante dessa realidade, sua única possibilidade de salvação está na graça de Deus.
Devemos enfatizar, contudo, que a graça de Deus tem um outro lado, que com frequência nos esquecemos: a obra sacrificial de Cristo. É um erro lamentável julgar toda a verdade considerando apenas a parte que nos compete do todo. A graça de Deus se evidencia nas obras da Trindade. O Pacto da Graça, por meio do qual somos salvos, foi Pacto de Obras para Cristo. A nossa salvação é muito cara, custou o precioso sangue de Cristo (1Pe 1.18-20/At 20.28; 1Co 6.20). Isso longe de apontar para o suposto valor inerente de nossas almas, revela o amor gracioso de Deus que confere valor a nós.
Conclusão
A doutrina das indulgências e a prática da realização de missas em favor dos mortos deram grande vigor à doutrina de salvação com base em méritos humanos. Essa doutrina colocou em xeque a doutrina da salvação pela graça, retomada por Lutero e enfatizada fervorosamente pela teologia reformada. Nada de méritos humanos para a salvação. Nada de colaboração com Deus para a salvação. Somos salvos pela graça. Sola gratia.
Aplicação
Para ter uma boa ideia do efeito devastador causado pela cobrança de indulgências na Idade Média, assista ao filme Lutero. Você consegue perceber algum reflexo dessa prática medieval na igreja contemporânea?
Boa leitura
A graça de Deus é um dos temas mais importantes de toda a Escritura. Para conhecer mais sobre o tema, sugerimos a leitura de três livros publicados pela Editora Cultura Cristã: Salvos pela graça, de Anthony Hoekema, Graça que transforma, de Jerry Bridges, e Cristo e a cruz, de Alderi M. Souza e Hermisten M. P. Costa.
>> Autor do estudo: Vagner Barbosa
>> Estudo publicado originalmente pela Editora Cultura Cristã, usado com permissão.